Cautela e planejamento, bases da receita para a retomada

“Mas a cultura da cautela, que chegou a existir depois da crise do café [da década de 1930], se perdeu com o crédito farto dos anos 1980 e 1990. Como o setor funciona hoje, é preciso uma gestão de risco mais cautelosa. É preciso investir mais na prevenção

3 de novembro de 2005 | Sem comentários Comércio Mercado Interno
Por: Valor De São Paulo




A maré virou e o barco foi a pique, mas o acidente não foi fatal. As chuvas insistem em cair e pancadas intermitentes lembram aos náufragos que é preciso nadar. Nem todos têm fôlego, e as bóias à disposição são insuficientes. No horizonte o céu está mais claro, mas nadar é preciso. Um barco melhor talvez não tivesse virado. É mais ou menos esta a situação dos agronegócios hoje no país, segundo cinco conceituados economistas que acompanham de perto o setor há pelo menos duas décadas.

Procurados pelo Valor, Guilherme Dias e Fernando Homem de Melo, professores titulares da FEA/USP, os consultores José Roberto Mendonça de Barros (MB Associados) e Fabio Silveira (MSConsult) e Getúlio Pernambuco, da CNA, observaram que a conjunção favorável que impulsionou o campo de meados de 2002 ao início de 2004 transformou-se em “inferno astral” em 2005, em parte por imprudências dos próprios produtores – estas relativizadas pela CNA. E concordam que, ainda que reversíveis no médio prazo, a crise de liquidez dos grãos e as feridas abertas na pecuária pelo ressurgimento da aftosa servem de alerta para mudanças estruturais que deveriam ter acontecido há tempos.

Para este ano, as conseqüências do “inferno astral” são irreversíveis e aparecem em todos os indicadores do setor, ainda que amenizadas pelo bom desempenho das cadeias produtivas de açúcar e álcool, café, laranja e – até a aftosa – carnes. Há sinais externos e domésticos de que uma retomada pode ser iniciada em 2006, mas, segundo os especialistas, é preciso cautela e planejamento.

“O agronegócio brasileiro viveu uma fase extraordinária, muito favorecida pelo câmbio e por juros mais baixos em parte do período – além de fatores externos como quebras de safras de grãos nos Estados Unidos e aumento da demanda asiática. Mas houve na bonança, por parte dos produtores, má gestão financeira e erros na análise macroeconômica. Agora que os juros estão mais altos, o câmbio já não é o mesmo, o cenário externo é mais adverso e a renda está em queda, onde está a poupança da boa fase?”, pergunta Fernando Homem de Melo.

Para Guilherme Dias, a queda das cotações internacionais dos grãos em relação aos patamares de 2003 e primeiro semestre de 2004, principalmente no caso da soja, era inevitável e poderia ter sido prevista pelos agricultores. Dias concorda que isso ajudou a reduzir drasticamente as margens de lucro nas lavouras – que em alguns casos chegaram a superar 100% na fase áurea -, da mesma forma que a apreciação do real em relação ao dólar. Mas adverte que a crise de liquidez dos grãos foi agravada pelos erros dos produtores e que a pressão deste ano por socorro financeiro e renegociação de dívidas mostra que é preciso evoluir.

“Na década de 90, houve renegociações e prorrogações de dívidas ‘de avó para neto’, cheias de vantagens para devedores do Pesa [programa de securitização e saneamento de ativos]. Mas mesmo em anos de renda em alta grande parte dessas dívidas não foram pagas. Tivemos uma inadimplência moderada em 2001, vergonhosa em 2002 e novamente modesta em 2003. E é preciso entender que esta inadimplência tem reflexos sobre o crédito rural e sobre o que resta de espaço para se construir um mercado de crédito rural no país”.

Getúlio Pernambuco, da CNA, lembra que colaborou para a crise atual a estiagem deste ano que quebrou a produção de grãos da região Sul na safra 2004/05. E que em razão também dos demais fatores (câmbio, queda de preços e juros), o reescalonamento dos financiamentos de custeio de curto prazo era inevitável. “O governo precisa trabalhar em uma política de preços mínimos eficiente. E é preciso ter recursos para executar outras políticas existentes que são boas. Se não formos rápidos para resolver problemas internos, não ocuparemos o espaço que outros países temem que ocupemos no cenário internacional”, afirma.

Mendonça de Barros ressalta que na crise de liquidez há componentes de curto prazo, mas destaca que também há uma espécie de cansaço da estrutura existente de suporte do setor. Segundo ele, é preciso superar gargalos como a falta de regulamentação da Lei de Biossegurança e os eternos problemas ligados à elevada carga tributária e à infra-estrutura logística. O especialista destacou, ainda, que aumentou muito a participação dos recursos próprios ou das agroindústrias no financiamento dos produtores rurais – que os tornam mais suscetíveis às variações cambiais, por exemplo -, e que é necessário um seguro rural eficiente.

“Mas a cultura da cautela, que chegou a existir depois da crise do café [da década de 1930], se perdeu com o crédito farto dos anos 1980 e 1990. Como o setor funciona hoje, é preciso uma gestão de risco mais cautelosa. É preciso investir mais na prevenção do incêndio. Não se conseguiu organizar uma visão estratégica do setor e ainda estamos na fase das reivindicações”, diz.

Para Fabio Silveira, uma política calcada em mais recursos do governo tende a “perpetuar vícios que vínhamos rompendo. Para ele, “o Brasil tem que avançar em um processo de maturação que depende em grande parte dos produtores, que devem perseguir a profissionalização de suas atividades no sentido amplo. É preciso planejamento. Não se pode prescindir da atuação do Estado, mas este tem de abrir as torneiras em casos específicos e com contrapartidas dos produtores”. (FL)

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