OPINIÃO
21/08/2008
Agroenergia e o uso sustentável do território
Por Elisa Pinheiro de Freitas
Os últimos eventos relativos às mudanças climáticas e a elevação dos preços do barril de petróleo têm acelerado, por todo o globo, a busca por fontes de energia que sejam, sobretudo, ecologicamente corretas. Indubitavelmente, os biocombustíveis constituem alternativas energéticas de grande importância estratégica, visto que não é em qualquer porção do planeta que existem condições ideais para a produção dos mesmos com eficiência e em larga escala. Nesse sentido, o Brasil emerge, dentre o conjunto de nações, como o país que possui os elementos chaves para o desenvolvimento promissor dessas novas modalidades de energia.
Dentre esses elementos decisivos, destacamos o território. Não raro compreendido como algo dado e como palco, o território não tem tido a devida relevância nas análises políticas e econômicas enquanto uma instância da sociedade. Partindo do entendimento de que o território é a materialidade mais a vida que o anima, há que se pensar, de forma clara, como usar o território para a produção dos biocombustíveis sem que os arranjos territoriais já construídos tenham os seus aspectos alterados de modo a gerar novos passivos. Queremos afirmar com isso que a expansão da cana-de-açúcar, uma das principais matérias-primas na produção do etanol, do Estado do São Paulo para outros Estados vizinhos, como Mato Grosso do Sul, Goiás e Minas Gerais, já está colocando em marcha a disputa entre capital versus capital, isto é, entre grandes produtores de grãos/pecuaristas e os usineiros/produtores de cana. Diferentemente do conflito entre capital versus trabalho, marcado pela relação entre capitalistas e trabalhadores, o fenômeno que ocorre a partir da expansão da cana é a rivalidade entre capitalistas. Não podemos precisar, ainda, as conseqüências desse fato. Porém, é indiscutível que esteja em processo uma possível fragmentação de frações do território, já que existe uma disputa por terras para a produção da cana em locais em que o uso da terra é destinado a outros cultivos.
A coesão territorial é, nesse momento de crise ambiental e energética, um trunfo importante na construção de um consenso positivo ao entorno da produção do etanol. O Brasil precisa mostrar para o mundo que não apenas possui condições físico-territoriais para o desenvolvimento em grande escala dos biocombustíveis, mas expor à vista que dispõe de um conjunto de medidas capazes de conciliar os diferentes interesses quanto aos usos do território nacional. Desse modo, a questão da sustentabilidade na utilização do território não poderá estar limitada estritamente aos aspectos ecológicos, mas deverá abranger as características culturais, políticas, sociais e econômicas inexoráveis a cada parcela territorial. Isso significa que antes mesmo do Brasil liderar a criação de um mercado para os biocombustíveis, é um imperativo para o país a construção de um plano de ordenação territorial que seja democrático. Em outras palavras, que a expansão da cana ocorra concomitantemente com a expansão de gêneros de primeira necessidade e que ambas não comprometam a manutenção dos ecossistemas nacionais. Logo, o Brasil asseguraria tanto a suficiência energética limpa quanto a soberania alimentar.
A expansão da cana já está colocando em marcha a rivalidade entre produtores de grãos e os usineiros; disputa entre capitalistas
Um outro elemento que colocou o Brasil no rol dos países com reais condições de substituir o uso de combustíveis fósseis pelos combustíveis renováveis e limpos foi o Programa do Açúcar e do Álcool (Proálcool). Criado em meados dos anos de 1970, o objetivo do programa era diminuir a dependência do país em relação ao petróleo que naquele período também estava em alta. No entanto, a despeito do caráter positivo do Proálcool, há que se enfatizar que tal programa também deixou marcas indeléveis no território nacional. O Estado de São Paulo, em decorrência de sua infra-estrutura bastante desenvolvida devido ao ciclo do café, concentrou mais de 50% dos recursos do programa na produção do álcool combustível. Vinculada a concentração de renda, houve também a concentração de terras e a conseqüência mais evidente desse processo foi a urbanização acelerada, alimentada pelo forte êxodo rural. Além disso, determinadas áreas da Região Nordeste com forte tradição na produção açucareira tiveram menos acesso aos recursos provenientes do Proálcool.
Assim, se por um lado tal programa logrou êxodo, à medida que criou as bases para o desenvolvimento das inovações tecnológicas necessárias ao processo de produção do álcool como combustível, por outro lado aprofundou as desigualdades territoriais, uma vez que a Região Centro-Sul, sobretudo o Estado de São Paulo, concentrou grande parte dos subsídios governamentais em detrimento de outras porções do território que foram alijadas desse processo.
No atual contexto de alterações climáticas, aumento do preço do petróleo e alimentos escassos, o Brasil tem a chance histórica de tornar-se uma referência global no que tange à produção de energia limpa e alimentos. Para tanto, o Estado deverá tomar medidas que impeçam o uso corporativo do território, ou seja, não consentir que apenas alguns setores da economia e determinadas frações do território sejam privilegiados em detrimento de outros na efetiva conjuntura. Deve antes dotar de infra-estruturas as áreas que possuem potenciais para sustentar a expansão de matérias-primas para a produção dos biocombustíveis e regular a utilização do território a partir dos interesses que estejam voltados para o desenvolvimento endógeno do país. Se essas premissas não forem levadas em consideração no plano de zoneamento que o governo pretende propor para gerenciar a difusão da cana ou de outros cultivos úteis à produção dos biocombustíveis, as instituições supranacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), dentre outras, terão argumentos suficientes para criar empecilhos na constituição de um mercado global para os combustíveis limpos, mercado este para o qual o Brasil possui atributos imprescindíveis para tornar-se protagonista.
Elisa Pinheiro de Freitas é doutoranda em Geografia Humana na Universidade de São Paulo (USP).