Café e dependência

Darcy Roberto Lima
Ph.D em Medicina pela Universidade de
Londres e coordenador científico do Projeto Café e Saúde

Uma das
principais críticas das pessoas que não gostam ou que ainda possuem preconceito
contra o café é de que a bebida causa dependência. Talvez seja pela água que o
café possui. Pois caso uma pessoa seja colocada numa sala com alimentos, mas sem
água por uns poucos dias, ela reclamará a falta da água. E apresentará sinais de
dependência da água. Boca seca, sede intensa, apatia, prostração e fraqueza são
sinais iniciais da falta de água. A seguir podem surgir delírios, alucinações e
alterações do comportamento. A pessoa lentamente fica confusa e perde a
consciência. A seguir entra em coma e morre. A primeira coisa que cada ser
humano faz ao nascer é se tornar dependente químico. Ao respirar pela primeira
vez o recém nascido torna-se dependente do oxigênio para todas as atividades
bioquímicas de seu organismo. A seguir torna-se dependente químico do mais nobre
dos alimentos: o leite materno. E o amor e carinho da mãe, o qual traz prazer e
proteção ao recém nascido. Mais tarde amplia esta dependência química para
proteínas, glicídios, lipídeos, vitaminas e sais minerais. São substâncias
vitais para o ser humano. E durante sua vida todo o ser humano torna-se
dependente das reações químicas que ocorrem no seu cérebro causando prazer,
alegria, felicidade e amor, decorrente de diversas coisas naturais como a
família, amigos, trabalho.


Tudo que ocorre na nossa vida causa reações químicas no cérebro que são
responsáveis pela alegria ou tristeza, prazer ou dor, bem como todas as outras
emoções possíveis. E além de formas naturais de prazer, existem formas
artificiais, como as drogas. O egoísmo humano ainda é um dos mais poderosos
instintos, vinculado aqueles da sobrevivência, como nutrição e reprodução. Este
instinto faz com que aqueles incapazes de lutar e obter sua felicidade de forma
natural tentem conhecê-la pelo menos de forma temporária e artificial através do
consumo de drogas. Por isto podemos nos tornar dependentes de coisas saudáveis,
como água, leite, café e exercícios (hábitos saudáveis) ou dependentes químicos
de substâncias que prejudicam a saúde (vício), como o tabaco, álcool e drogas
ilegais.


Todo cérebro humano usa apenas 10 % de sua capacidade. Mas todo ser humano
quer mais do que sua capacidade e além de sua vontade. Todo mundo que ser um
super-homem (ou mulher-maravilha), ter um super-cérebro para obter um
super-sucesso com uma super-fortuna e uma super-fama. Mas nesta busca poucos são
os que chegam ao sucesso e muitos os que conhecem o fracasso, a frustração e
daí, a depressão e o uso de álcool e outras drogas. A química cerebral que leva
a depressão e ao uso compulsivo de drogas com perda do controle, criando a
dependência, começou a ser compreendido apenas recentemente. O bombardeamento
excessivo do cérebro por estas substâncias causa adaptações moleculares
permanentes de diversos sistemas neuronais. Dentre as drogas que causam
dependência, apenas os opióides e o álcool interagem com neurônios causando uma
significativa dependência somática. Por outro lado, todas as drogas que causam
dependência (nicotina, cocaína, álcool, maconha) parecem ativar e produzir
alterações permanentes nos circuitos dopaminérgicos do sistema límbico que
controlam a motivação e o comportamento.


Acredita-se que a principal via envolvida na origem da dependência a drogas
parece ser a via dopaminérgica que se estende da área tegmental ventral, uma
região de formação reticular mesencefálica que envia fibras para áreas
telencefálicas pertencentes ao sistema límbico, como o núcleo amigdalóide, a
área septal e o córtex do giro do cíngulo. Esta via mesolímbica também parece
estar envolvida na motivação e comportamento necessário para a sobrevivência
humana e para o processo reprodutivo, incluindo o próprio ato da reprodução.


O próprio processo de escolha e consumo de alimentos pode não ter sido uma
forma específica de seleção no processo evolutivo. Talvez a ativação deste
sistema mesolímbico dopaminérgico, alimentos (e drogas) podem levar a uma
gratificação e condicionamento, fortalecendo mecanismos de memória e
aprendizado. Quando algo estimula este sistema, imediatamente é reconhecido e
lembrado vividamente, inclusive as circunstâncias que levam ao seu uso ou
consumo.


A cocaína, a nicotina, os opióides e o etanol são todos originariamente
subprodutos de plantas ou da fermentação natural e atuam como substâncias
condicionantes e capazes de gerarem dependência porque mimetizam ou aumentam as
ações dos neurotransmissores que atuam nos mecanismos de gratificação, prazer e
aprendizado do ser humano. A cocaína inibe a recaptação da dopamina, aumentando
sua duração e seus efeitos nas sinapses do sistema mesolímbico enquanto que a
anfetamina libera a dopamina dos neurônios dopaminérgicos. Opióides como a
morfina e a heroína mimetizam neurotransmissores opióides (encefalinas) que
atuam diretamente no núcleo acumbens mas que podem também atuando de forma
desinibitória na área tegmental ventral (VTA), favorecendo a liberação de
dopamina. A nicotina mimetiza a ação de acetilcolina nos receptores nicotínicos
centrais enquanto que o etanol possui um poderoso efeito facilitador nos
receptores GABAérgicos. Embora as ações da nicotina e do etanol nos circuitos de
gratificação do cérebro não sejam ainda completamente conhecidas, sabe-se que
ambas as substâncias causam uma maior liberação de dopamina no núcleo acumbens e
sistema límbico (ver Figura 1).


E este aumento dos níveis de dopamina pode ser inibido em diversas etapas,
como através do uso de antagonistas de receptores opióides do sistema, como o
naltrexone, o qual se constitui num novo avanço no tratamento do alcoolismo.
Descobertas recentes em medicina caracterizaram que o ser humano, além de
selecionar plantas (nicotina, cocaína, heroína, álcool) que estimulem esta forma
de prazer no sistema límbico, também identificou plantas que podem estimular o
córtex cerebral, aumentando a atenção e memória, além de bloquear a função
exagerada do sistema límbico através deste sistema opióide, modulando ou
interferindo no desejo de auto-gratificação que leva ao consumo de drogas. Isto
explica porque o café é a planta mais consumida no mundo.


O problema é ser dependente de algo que prejudique a saúde – o vício (álcool,
tabaco, drogas ilícitas). O que não é o caso do café, se ingerido em doses
moderadas e de forma regular. Uma pessoa se torna dependente de algo prejudicial
quando não consegue todos ou a maioria dos itens que causam a dependência
saudável. O Quadro 1 apresenta as principais causas de dependência saudável ou
prejudicial ao ser humano.


Figura 1 – Circuito de prazer/gratificação do cérebro



Clique
na figura 1 para ampliá-la.


Explicação – Figura 1 – No sistema límbico existe uma rede de conexões entre
células nervosas que liberam peptídeos endógenos (encefalinas, endorfinas), os
quais regulam o teor final de dopamina, no núcleo acumbens. Esta via parece
estar envolvida na motivação e comportamento necessário para a sobrevivência
humana, incluindo o próprio ato da reprodução. Por exemplo, a escolha e o
consumo de alimentos podem não ter sido selecionados de forma específica no
processo evolutivo mas através da ativação do sistema límbico dopaminérgico,
alimentos (e drogas) podem levar a uma gratificação e condicionamento,
fortalecendo mecanismos de memória e aprendizado. Quando algo estimula este
sistema, imediatamente é reconhecido e lembrado vividamente, inclusive as
circunstâncias que levam ao seu uso ou consumo. A cocaína, a nicotina, os
opióides e o etanol são todos originariamente subprodutos de plantas ou da
fermentação natural, e atuam como substâncias condicionantes e capazes de
gerarem dependência porque mimetizam ou aumentam as ações dos neurotransmissores
que atuam nos mecanismos de gratificação, prazer e aprendizado do ser humano. A
cocaína inibe a recaptação da dopamina, aumentando sua duração e seus efeitos
nas sinapses do sistema mesolímbico, enquanto que a anfetamina libera a dopamina
dos neurônios dopaminérgicos. Opióides como a morfina e a heroína mimetizam
neurotransmissores opióides, que atuam diretamente no núcleo acumbens mas que
podem também atuar de forma desinibitória no sistema límbico, favorecendo a
liberação de dopamina. A nicotina simula a ação de acetilcolina nos receptores
nicotínicos centrais, enquanto que o etanol possui um poderoso efeito
facilitador nos receptores do aminoácido Gama-Amino-Butírico (GABA). A nicotina
e o álcool causam uma maior liberação de dopamina no sistema límbico. E este
aumento dos níveis de dopamina pode ser inibido em diversas etapas, como através
do uso de antagonistas de receptores opióides. O remédio naltrexona, usado no
tratamento do alcoolismo, atua bloqueando os receptores opióides no início do
circuito de gratificação do sistema límbico e o fármaco bupropiona, usado no
tratamento do tabagismo, atua no final do circuito aumentando os níveis de
dopamina, modulando e suprimindo assim o desejo excessivo de prazer obtido
através da nicotina, sendo um eficaz agente no controle do tabagismo (Adaptado
de Hyman, 2001 e Messing, 2001).


Quadro 1 – Causas de dependência



 



Referências:


1 – Nehlig, A.; Daval, J. L.; Debry, G. Caffeine and the central nervous
system: mechanism of action, biochemical, metabolic and psychostimulant effects.
Brain Res. Rev., 1992. v. 17, p.139-170.
2 – Lima, D. R. Cafeína e Saúde. Rio
de Janeiro: Record, 1989. 130 p.
3 – Lima, D. R. Cuidado!!! O popular café e
a poderosa mulher… podem fazer bem à saúde. Petrópolis: Medikka Ed.
Científica, 2001. 111 p.
4 – Lima, D. R. História da Medicina. Rio de
Janeiro: Medsi Ed. Científica, 2003. 324 p.
5 – Lima, D. R. Manual de
farmacologia clínica, terapêutica e toxicologia. Rio de Janeiro: Medsi Ed.
Científica, 2003. 3 Volumes, 3.456 p.
6 – Lima, D. R. QI, Café, Sono e
Memória. Rio de Janeiro: ECN, 1995. 120 p.


Artigo publicado originalmente em www.abic.com.br.


 

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