PORTO PRÍNCIPE – Um país miserável, onde 80% da população não têm emprego e vive sem água encanada e energia elétrica. Um Estado fragilizado, sem infra-estrutura básica, sem segurança, e que nos últimos quinze anos foi alvo de oito intervenções internacionais. Apesar disso, o Haiti, o país mais pobre das Américas, tem sido uma carta importante em um jogo de disputa político-ideológica no cenário global.
Dois conflitos de interesses fazem de Porto Príncipe a “dama de ouro”: a rivalidade entre os presidentes venezuelano, Hugo Chávez, e norte-americano, George W. Bush, por influência na América Latina – tendo Cuba, Bolívia e Brasil como “coringas” -; e a disputa entre China e Taiwan por reconhecimento e poder no contexto internacional, exposta principalmente nas Nações Unidas.
Estas duas “brigas” estão claramente definidas e atrapalham em certos aspectos o desenvolvimento do Haiti e a missão de paz da ONU no país (Minustah), concordam militares e diplomatas ouvidos pelo portal estadão.com.br.
“O presidente René Préval sempre me diz que o que ele precisa, pede à Venezuela, a Cuba e a Taiwan, porque eles dão sem burocracia. ´Eu peço a Cuba 400 médicos, eles mandam. Eu peço a Taiwan US$ 100 mil para estradas, eles mandam´, me diz Préval”, relatou ao estadão.com.br o embaixador brasileiro, Paulo Cordeiro Pinto.
Edmond Mulet, representante da ONU no Haiti, explica que, apesar dos Estados Unidos serem hoje os maiores doadores, os governos de Caracas, Havana e Taipé influenciam em Porto Príncipe devido à rápida e fácil liberação de recursos, equipamentos e pessoal.
Chávez x Bush
Dois dias após Bush visitar o Brasil, em 10 de março, e assinar com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva um protocolo de intenções para o desenvolvimento do biodiesel em nações latino-americanas, entre as quais o Haiti, Hugo Chávez foi recebido por milhares de pessoas nas ruas em Porto Príncipe, anunciando a liberação de US$ 100 milhões para as áreas de saúde, limpeza urbana e a construção de uma usina hidrelétrica no país caribenho, além do envio diário de 14 mil barris de petróleo dentro do Petrocaribe, programa venezuelano que subsidia a venda de petróleo e possibilita que o Haiti economize anualmente US$ 150 milhões.
Militares apontam que Chávez não é tão conhecido entre a população para ter sido recebido com tamanha “festa” e que o que se buscava era a repercussão política do fato junto à imprensa internacional. O Brasil lidera as tropas internacionais no Haiti e ficou em uma situação desconfortável com a rivalidade explicitada na ocasião.
´Eu aproximei Chávez do Préval´
Paulo Cordeiro diz que o presidente venezuelano ficou “enciumado” com o acordo para desenvolvimento do etanol e decidiu aumentar sua ajuda ao Caribe. Foi o embaixador quem, a pedido de Lula, apresentou o Chávez a Préval, após este ser eleito, em fevereiro de 2006.
“A Venezuela tirou o embaixador do Haiti após a queda de Aristide [Jean Bertrand-Aristide], em abril de 2004. Em 2005, o Brasil facilitou um diálogo entre os dois países, para que o Haiti entrasse no Petrocaribe. No dia que o Préval tomou posse, em 14 de maio de 2006, aportou aqui um navio carregado de petróleo. Desde então a Venezuela tem sido um dos grandes colaboradores de Préval”, relata o diplomata. Após a assinatura do acordo Brasil-EUA, Chávez e o líder cubano, Fidel Castro, pronunciaram-se inúmeras vezes publicamente contra os biocombustíveis, afirmando que a produção de alimentos direcionada para este fim causaria a fome de milhares. Cuba também é um dos grandes financiadores internacionais do país caribenho, enviando médicos, engenheiros, dinheiro e equipamentos “sem burocracia”.
“Hoje, o Brasil propõe uma parceria com os EUA e o Haiti na área de biodiesel. Isso causou reações venezuelanas. Porém, as conversações realizadas na cúpula de presidentes da América do Sul em Isla Margarita esclareceram a questão do uso do etanol”, explica Cordeiro. Na reunião, realizada em 19 de março na Venezuela, autoridades brasileiras conseguiram demover Chávez de colocar na declaração final uma condenação ao desenvolvimento de biocombustíveis na América.
Etanol no Haiti
Defensor da prospecção do etanol no Haiti, Paulo Cordeiro diz que o que mata a agricultura haitiana não é a cana-de-açúcar, mas as doações. “Aqui não há plantação de comida. O que mais mata a agricultura no Haiti não é a cana e sim as doações de alimentos vindas dos Estados Unidos. Mas se você tirar isso, metade do povo morre de fome, por que eles não têm dinheiro para comprar comida. O que tem que fazer é que o arroz, o café, os produtos haitianos sejam exportados para a diáspora haitiana comprar no exterior, e que o resultado disso volte ao Haiti como investimento”, explica o embaixador.
Logo após o passeio de Chávez por Porto Príncipe, Bush assinou a Lei Hope, que isenta de impostos a importação de produtos têxteis, manufaturados e alimentos do Haiti. Os programas de ajuda americanos fornecem ao país cerca de R$ 200 milhões ao ano, alimento para 600 mil haitianos pobres e tratamento contra Aids. Através da Organização Internacional de Migração (OIM), autoridades americanas colaboram também com recursos, alimentos e material escolar diretamente para ações sociais do batalhão brasileiro.
“Préval diz que o Haiti necessita da assistência de todos, com o que concordo, e reserva-se o direito de manter boas relações com todos os países. Cuba lhe dá apoio médico, os EUA constroem hospitais e os médicos cubanos trabalham dentro desses hospitais. Acho isso necessário se efetivamente queremos ajudar este país a se livrar das dificuldades. O Haiti não pode se dar ao luxo de escolher um ou outro”, diz Paulo Cordeiro.
Bolívia é carta marcada
A disputa etanol versus petróleo acirrou o atrito entre Chávez e Lula sobre o Haiti. Influente junto a Evo Morales, o venezuelano pressionou para que a Bolívia retirasse 400 militares que integram a Minustah, afirmando que a missão da ONU servia a interesses norte-americanos e que “promovia uma matança”.
“Entre 12 e 20 de abril, o ministro da Defesa e autoridades estiveram aqui e patrulharam Cité Soleil. Eles se deram conta que a presença das tropas bolivianas é importante e precisa continuar. Parece que na próxima semana chega o próximo contingente”, disse ao portal estadão.com.br em Porto Príncipe dia 26 de abril o comandante da Bolívia, o tenente coronel Gustavo Teran Cortez.
Só 20 dias depois o Congresso autorizou o envio de 215 soldados para substituir a já cansada tropa boliviana, que atua diretamente com os Brasil e estava há oito meses esperando o governo se decidir.
China x Taiwan
A China, que possui assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, tem provocado impedimentos para o prolongamento da missão da ONU desde a criação, em abril de 2004, quando uma onda de violência varreu o país e provocou a deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide.
O motivo é que o Haiti é um dos 26 países que reconhece e mantém relações diplomáticas e comerciais com Taiwan. Há 50 anos Taipé investe pesadamente no Haiti, enviando anualmente cerca de US$ 50 milhões anuais que são aplicados em infra-estrutura e geração de empregos.
Em troca, exige reconhecimento e apoio junto a organismos multilaterais e na comunidade internacional. Taiwan se considera independente da China, mas o governo de Pequim afirma que a ilha faz parte do seu território e a considera uma “província rebelde”.
Apoio a Taiwan atrapalha o Brasil
Segundo Antonio Jorge Ramalho, doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UNB) e que, a convite do governo brasileiro, trabalhará por um ano em universidades haitianas e criará o Centro de Cultura Brasileira no Haiti, o apoio de Préval a Taiwan atrapalha o Brasil no mandato da missão. O Brasil possui o maior número de militares na Minustah, cerca de 1.200 e desde o início tem liderado operações contra o crime organizado no país caribenho, pacificando os bairros mais violentos da capital.
Em setembro de 2006, o governo Préval “deu um passo em falso ao apoiar uma resolução a favor de Taiwan na ONU”, afirma o embaixador Paulo Cordeiro, pondo mais lenha na fogueira.
Quando o mandato da Minustah estava terminando, em fevereiro de 2007, a China posicionou-se contra seu prolongamento por um ano, colocando impedimentos à ampliação da ação militar contra gangues. Por fim, autoridades brasileiras trabalharam diplomaticamente em Pequim para que o governo chinês concordasse com as regras do “peace-enforcement” (imposição da paz) e possibilitasse a ação militar até 15 de outubro de 2007.
Contradição geopolítica
Mesmo não possuindo relações diplomáticas com o Haiti e exigindo que Porto Príncipe corte laços políticos e econômicos com Taiwan, Pequim contribui desde 2004 com 140 policiais (125 homens e 15 mulheres), que integram a tropa de choque da polícia da ONU (FPU) na missão.
Atuando junto com os brasileiros nas operações em Cité Soleil, a região mais violenta do Haiti, o comandante chinês Buian Zhonghui diz que não recebe nenhuma recomendação de seu governo sobre como agir em relação ao fato do Haiti reconhecer Taiwan, confirmando, no entanto, que se sente inseguro quanto à continuidade futura da participação da China na Minustah.
Reticentes sobre falar do assunto, o policial Torig Zhimin e a tradutora Guyun Wang dizem que não vêem dualidade em China e Taiwan estarem atuando no mesmo território e colaborando com o desenvolvimento de um mesmo país.
“Estamos aqui como militares, agindo numa operação militar e vamos fazer nosso trabalho. Não agimos como diplomatas. Esta questão é puramente política e história”, diz Zhimin.
Já dizia no século XVII o historiador Carl Von Clausewitz: a guerra é a continuação da política por outros meios. Na missão da ONU no Haiti, busca-se a vitória sobre o inimigo, nem que seja pela imposição da força. Onde não há paz, luta-se por ela. Seja através das armas, da política ou da diplomacia. Mas no Haiti, ao invés de se ajudaram, estas três vertentes do jogo geopolítico muitas vezes atrapalham-se mutuamente.