Denise Neumann
Em 2000, há apenas seis anos, o Brasil comprou US$ 1,2 bilhão da China, valor quase idêntico ao US$ 1,18 bilhão importado do país asiático em 1997, no auge das importações brasileiras motivadas pelo real valorizado dos anos de câmbio fixo do Plano Real. Naqueles dois anos, as compras feitas na China representaram perto de 2% das importações totais do Brasil. No ano passado, o Brasil importou US$ 8 bilhões da China, quatro vezes mais do que há apenas seis anos – foram quase 9% do total.
É difícil imaginar que seis anos sejam suficientes para detonar uma mudança estrutural na indústria brasileira, mas quando se ouvem relatos dos processos em curso na China e a comparação com o que ocorre no Brasil, têm-se a impressão de que em breve não sobrará pedra sobre pedra da indústria local. Parece impossível concorrer com um fabricante que entrega por US$ 2 o metro quadrado de uma cerâmica com qualidade para concorrer com um produto similar que sai da fábrica brasileira a US$ 18.
No auge do Plano Real, o consumidor brasileiro percebia e comprava muitos produtos “made in China” – a maioria deles de péssima qualidade. Mas isso mudou e ajuda a explicar porque em tão curto espaço de tempo (de 2000 para 2006), os chineses quadruplicaram sua participação na importação brasileira. Em 1997, dos cinco principais produtos comprados pelo país na China, quatro eram bens de consumo de baixo valor (telefones fixos, vestuário para homens, calçados e brinquedos), e um era básico (carvão).
Nos últimos anos esse quadro mudou drasticamente. Em 2006, dos cinco principais produtos importados da China, um era produto acabado de consumo e de maior valor agregado (computador) e os outros quatro eram componentes (partes e peças para telecomunicações, partes e peças para informática, circuitos integrados e dispositivos de cristais líquidos).
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A primeira disputa está perdida. E a segunda?
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Essa mudança na composição da pauta importadora da China mostra que a indústria brasileira encontrou na compra de componentes chineses uma forma de reduzir seus custos e assim ganhar competitividade para enfrentar o próprio “inimigo”. Essa é a metade boa da história. A outra metade – bem menos interessante – está na avassaladora sanha desta entrada de itens chineses e na sua pulverização. Os 10 principais itens trazidos da China representam 27% de tudo que o país compra por lá. Na mão contrária, os 10 maiores itens exportados pelo Brasil (oito básicos e dois semimanufaturados) representam 57% de tudo que o país vende para os chineses.
A mudança da China não decorre só da escala e tampouco o país é pobre em tecnologia. Pelo contrário. Recente estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), publicado no Valor (em 17 de maio de 2007), mostrou que entre 1999 e 2006, as exportações chinesas de bens de alta tecnologia para todo o mundo passaram de US$ 40 bilhões para US$ 334 bilhões, ficando com 35% do total. Mas as outras indústrias também cresceram, confirmando que a China não escolhe setores. Ela produz quase tudo. No Brasil, no mesmo período, as exportações de alta intensidade tecnológica mantiveram-se mais ou menos constantes, oscilando entre 6,5% e 7,0% do total. Só isso.
Ou seja, além da escala, há uma grande e fundamental diferença entre as indústrias brasileira e chinesa: a primeira encontra-se literalmente estagnada (apesar do esforço quase individual de algumas companhias inovadoras) e a segunda (fortemente apoiada por políticas públicas) é dinâmica, competitiva e movida pela busca de maior eficiência, agregação de valor e melhora tecnológica do produto.
Em dias de chuva, as esquinas de grandes cidades como São Paulo são inundadas por guarda-chuvas e sombrinhas chinesas vendidas por R$ 5,00 e que não chegarão ao próximo inverno. Mas essa parte da indústria chinesa – aquela que fabrica “cópias” em quantidades simplesmente incontáveis mas que ultrapassam os milhões de unidades/ano – é apenas uma face da concorrência e talvez a menos nociva a longo prazo, ainda que ela possa custar o emprego de muitos “fazedores de sombrinhas” em fábricas de calçados, camisetas, móveis, copos, canetas etc. Essa é a uma disputa que o Brasil já perdeu. É uma questão de tempo para uma redução drástica (ou até para o fim) dos fabricantes nacionais, mas o tempo é importante para que o governo e as empresas planejem como e onde criar empregos para os “fazedores de sombrinhas”. Ele podem – e devem – ser treinados para funções mais qualificadas em outros segmentos da indústria e de serviços.
A disputa que já começou e que o Brasil não pode perder é outra. O grande risco da concorrência chinesa está na capacidade impressionante que o país e as empresas lá instaladas estão demonstrando em agregar valor tecnológico aos seus produtos e assim concorrer com o Brasil – no mercado doméstico e mundial – em um nicho de mercado onde antes nos sentíamos anos à frente das “quinquilharias” chinesas. A China não produz mais apenas “quinquilharias”. O DVD importado da China funciona, a máquina doméstica feita por lá deixa o café expresso cremoso, o ferro de passar roupa tem base de teflon, o climatizador de vinho o deixa na temperatura certa. Ainda há dúvidas sobre a qualidade e o conforto dos carros, mas ninguém duvida que eles vão chegar lá.
A elevação do conteúdo tecnológico da produção nacional e, conseqüentemente, das exportações é o caminho para gerar empregos melhor remunerados e mais renda. Essa é a lição que a China já incorporou – e muito rapidamente – ainda que empregos qualificados e melhor remunerados ainda estejam em gestação por lá. Mas aqui falamos isso há muito tempo, mas continuamos estacionados, parados, esperando alguma coisa, alguém, um milagre, talvez. Está nos bons livros, nos artigos, nos debates. Mas não está na prática do governo e das indústrias. Por que há uma diferença tão abissal entre nossa teoria e prática, e por que aparentemente do outro lado do mundo eles estão conseguindo pôr em prática algo que parece tão óbvio, algo que é repetido é outra questão. E a resposta, nada óbvia.
Denise Neumann é editora de Brasil