A VENDA DE UM IMÓVEL EM SÃO PAULO ENCERRA DEFINITIVAMENTE A TRAJETÓRIA DA DISNASTIA QUE COMANDOU O MAIOR GRUPO INDUSTRIAL DA HISTÓRIA DO PAÍS

Por: 17/01/2007 05:01:12 - Clipping Ministério do Planejamento

Carlos Sambrana e Joaquim Castanheira
Isto é Dinheiro num. 0486

 


Nos finais de semana dos anos 20 e 30, uma pequena multidão de curiosos
estancava na frente do número 83 da avenida Paulista. Formavam um grupo
heterogêneo: eram pais de família com os filhos, turistas de outras cidades
brasileiras e até visitantes estrangeiros, sobretudo italianos. O que os unia
era o desejo de ver e cumprimentar seu morador, o conde Francesco Matarazzo, o
homem mais rico do País em todos os tempos.


Naquele endereço, em um terreno de 12 mil metros quadrados, erguia-se a Villa
Matarazzo, um imponente palacete cujas linhas retas remetiam a uma imagem de
solidez e austeridade. De 1898, quando foi construída, até 1996, ano em que os
guindastes a colocaram definitivamente abaixo, a mansão foi o símbolo da
ascensão, apogeu e queda do maior império industrial da história do capitalismo
brasileiro. O ponto final definitivo nessa trajetória foi colocado na semana
passada, quando um consórcio formado pela Cyrela e pela Camargo Corrêa
Desenvolvimento Imobiliário arrematou o terreno por R$ 125 milhões.


A venda também é o epílogo de uma longa sucessão de brigas familiares que
impediram a concretização do negócio durante anos. “Poderíamos ter vendido a
propriedade há cerca de 15 anos, mas não fizemos por divergências familiares”,
disse em entrevista exclusiva à DINHEIRO José Eduardo Matarazzo Khalil, bisneto
do conde Francesco. “Cada herdeiro tinha um interesse, tentei conciliar o que
era melhor para todos.”


As negociações duraram um ano e meio. A demora ocorreu, principalmente,
devido às diferenças entre herdeiros da família sobre valores e compradores.
Diversas propostas foram apresentadas por diversos membros da família. Três
ofertas chegaram à reta final. A disputa estava entre a Lindencorp, o Banco
Português de Negócios e o consórcio formado por Camargo Corrêa e Cyrela. Esta
última levou a melhor. “Estamos falando da maior construtora e da maior
incorporadora do mercado”, diz José Eduardo.


Foi ele que encaminhou o lance vencedor e conduziu as negociações. Mas o
negócio, de fato, estará concluído apenas na segunda-feira, 15 de janeiro, pela
manhã. É quando a família se reunirá para assinar o contrato de R$ 125 milhões.
Eles receberão R$ 45 milhões em dinheiro e o restante em uma permuta de 12 mil
metros quadrados de área construída no futuro prédio comercial que será erguido
no local. Tudo isso será dividido em cinco partes entre os herdeiros de
Francisco Matarazzo Junior, filho do conde Francesco: Maria Pia Matarazzo,
Filomena Matarazzo, conhecida como Filly, Francisco Matarazzo III, Helene
Matarazzo, viúva de Ermelino, e Eneida Matarazzo, viúva de Eduardo Matarazzo.


A mãe de José Eduardo, Maria Pia, contudo, não verá a cor do dinheiro. O
montante foi bloqueado pela Justiça para o pagamento das dívidas do grupo
Matarazzo. “O melhor desse negócio foi resolver as diferenças e até voltar a
falar com algumas pessoas da família”, revela José Eduardo.



Lendário: o conde Franscesco, dono de 365 fábricas no Brasil, era
o italiano mais rico do mundo.


O desfecho dessa novela também revela muito da história recente do País. “O
palacete de um industrial simbolizou uma época em que o Brasil privilegiava a
produção”, afirma Andrea Matarazzo, secretário das subprefeituras da cidade de
São Paulo e sobrinho-bisneto do conde Francesco. Como membro do clã e ocupante
de um importante cargo municipal, Andrea tem uma visão privilegiada do
significado do negócio. “O imóvel acompanhou a evolução da cidade”, afirma ele.
“Quando São Paulo caracterizava-se por suas chaminés, a mansão viveu seus dias
de glória.


À medida que a vocação da cidade migrava para o setor de serviços, o terreno
passou a abrigar um estacionamento e agora terá uma torre de escritórios fincada
sobre ele.” A própria avenida Paulista, onde se situa o terreno, é testemunha
das profundas mudanças no perfil de São Paulo. Nos primórdios de sua criação,
abrigou mansões dos barões do café. Nas primeiras décadas do século 20, estes
cederam espaço para as residências também monumentais dos magnatas da indústria.
“Atualmente, ela é sede dos conglomerados financeiros”, afirma Andrea, com uma
ponta de ironia.


O projeto do palacete começou a tomar forma em 1890, quando o conde Francesco
mudou-se para São Paulo. Nascido na pequena Castellabate, no sul da Itália, ele
desembarcou no Brasil em 1881 e imediatamente tornou-se um tropeiro na região de
Sorocaba, interior de São Paulo. Vendia banha de porco e, para aumentar seu
período de validade, resolveu condicioná-la em latas fabricadas em uma oficina
de sua propriedade.


Era o embrião de uma corporação de proporções colossais. Em seu momento
máximo, as Indústrias Reunidas F. Matarazzo possuíam 365 fábricas – brincava-se
que era uma para cada dia do ano – nos mais variados setores, de alimentos a
produtos de limpeza, de cerâmicas e azulejos a papel e tecidos, além de
siderúrgicas, usinas hidrelétricas e até um terminal privativo no Porto de
Santos. O conde detestava ficar na mão de agiotas e fornecedores. Por isso,
tinha até uma empresa de litografia, que produzia os rótulos dos produtos, uma
marcenaria para fornecer caixotes e uma oficina para reparar as máquinas das
unidades fabris.
Francesco precisava de uma residência proporcional à
magnitude de seus negócios.


Pai e filho: Francesco e Chiquinho recebiam a visita de curiosos que queriam
conecê-los.


Depois de adquirir o terreno na avenida Paulista, ergueu um casarão de 4,4
mil metros quadrados com 16 salas, 19 quartos (afinal, eram 13 filhos), além de
adegas e instalações para funcionários. As paredes tinham 60 centímetros de
espessura e o pé-direito atingia 4,5 metros de altura. Um brasão da família de
150 quilos, esculpido em mármore Carrara, decorava o pórtico de entrada. Logo, o
local se tornou um ponto de visitação. “O conde havia se tornado um
celebridade”, afirma Ronaldo Costa Couto, ex-ministro do governo Sarney e autor
da mais alentada biografia do conde Francesco. “Os imigrantes desembarcavam no
Brasil e projetavam seu futuro em sua trajetória.


Os brasileiros se espelhavam nele em seus sonhos de ascensão social.” Afinal,
estava ali um homem que amealhara uma fortuna estimada, em valores de hoje, em
US$ 20 bilhões. “Era o italiano mais rico do mundo”, diz Couto. Em 1937, seu
enterro atraiu uma multidão calculada em 100 mil pessoas, numa época em que a
população da cidade era de um milhão de habitantes.


O conde tinha partido, mas o casarão já adquirira uma identidade própria.
Francisco Matarazzo Junior, conhecido como conde Chiquinho, manteve o glamour do
local, mas estampou sua marca pessoal. “Ele fez uma reforma profunda no imóvel”,
diz Couto. “Só os alicerces permaneceram.” Mais do que nunca a inspiração
fascista prevaleceu no palacete. Conde Chiquinho, claramente um admirador de
Benito Mussolini, contratou o arquiteto italiano Marcello Piacentini para o
trabalho. De quebra, o arquiteto sugeriu (e foi acatado) que se colocasse
grandes “M”, iguais aos utilizados pelo Duce, nos portões de todas as fábricas
do grupo.


Foi no “reinado” de Chiquinho que a casa adquiriu ares de museu com quadros
de artistas clássicos europeus e pintores contemporâneos brasileiros. Andrea
Matarazzo guarda na memória obras de Canaletto e Rubens penduradas nas paredes
da mansão. Nessa época, o local também sediou regabofes memoráveis, como o
jornalista Joel Silveira descreveu no artigo “A milésima segunda noite da
avenida Paulista”, em 1945. Nele, Joel, conhecido por sua pena ferina e
apelidado de “a víbora” por Assis Chateaubriand, seu patrão e eterno inimigo dos
Matarazzo, relata a nababesca festa em torno do casamento de Filly com o
milionário carioca João Lage. Outro momento histórico, lembra Andrea, foi a
festa de bodas de ouro do conde Chiquinho e de dona Mariângela, em 1973. “Houve
até uma apresentação do Royal Ballet, de Londres”, diz Andrea.


Talvez tenha sido o último grande momento do casarão. Quatro anos depois, o
conde Chiquinho morreu. Em seu testamento, nomeava a filha caçula Maria Pia,
então com 32 anos de idade. A jovem assumiu um grupo ainda portentoso, mas já
combalido por dívidas crescentes. O País havia mudado. O conde Francesco fora o
pioneiro em quase todos os mercados em que atuava. Enfrentou pouca ou nenhuma
concorrência. O Brasil dos anos 60 e 70, ao contrário, via o desembarque das
grandes multinacionais com seus produtos inovadores e suas práticas modernas de
gestão. As Indústrias Reunidas F. Matarazzo não estavam prontas para
enfrentá-las.


A agonia foi lenta e sofrida. A cada ano, pedidos de concordata e falência
foram derrubando as empresas do grupo. Em 1992, elas estavam reduzidas a 29. Seu
patrimônio encolhera para US$ 500 milhões e as dívidas somavam US$ 300 milhões,
apenas com o Banco do Brasil, BNDES e Receita Federal. Maria Pia hoje dedica-se
a administrar a massa falida de algumas das empresas. Ainda existem cerca de
quatro mil ações trabalhistas pendentes contra o antigo império. Ciente das
dificuldades financeiras da família, um oficial de Justiça penhorou o par de
brincos que a empresária usava quando foi localizada – jóia bem mais valiosa do
que os R$ 700 reclamados no processo.


Maria Pia foi a última moradora da mansão da avenida Paulista, nos anos 80.
Não ocupava o casarão principal, mas uma casa de 400 metros quadrados,
construída no mesmo terreno. Logo surgiram as primeiras notícias de venda da
propriedade. As negociações não evoluíam sobretudo em função das recorrentes
divergências familiares. Em 1988, por exemplo, o Banco de Tokyo deixou o clã
tentado com uma proposta de US$ 100 milhões, mas não houve acordo. A ducha de
água fria veio no ano seguinte. No quarto mês de governo, a então prefeita de
São Paulo, Luiza Erundina, desapropriou a área para instalar ali o Museu da Casa
e Cultura do Trabalhador.


Assustados com a possibilidade de perder uma área tão valiosa, os Matarazzo
mandaram derrubar a mansão durante uma madrugada. Eles alegavam que a construção
estava abalada e chegaram a dinamitar a parte de trás da casa. A demolição da
propriedade só foi interrompida após a chegada da Polícia Militar. A disputa
entre a família e a prefeitura de São Paulo durou os quatro anos de governo de
Luiza Erundina. O assunto só foi enterrado quando Paulo Maluf assumiu a
prefeitura em 1993 e revogou a desapropriação. Dali em diante, a estrutura da
mansão de número 1.230 (a numeração atual) do centro financeiro da capital
paulista caiu na mais profunda decadência até que, em 1996, uma chuva levou o
palacete ao chão. Nem o brasão da família cravado na construção sobrou para
contar história. Apenas um pórtico da casa principal sobreviveu. “Ele deveria
ser preservado pelos novos donos do terreno”, diz José Penteado Vignoli, um
estudioso da história dos Matarazzo e colecionador de relíquias de suas
empresas. “Aquilo é o que restou da mansão e deu um passado de glórias. Seria um
presente para São Paulo.” Quando o casarão ainda estava de pé o escritório de
arquitetura de Giancarlo Gasperini desenhou o projeto de uma torre de 50 andares
que seria erguida na parte de trás do terreno, preservando inteiramente a
mansão. Como em outras ocasiões, a idéia não saiu do papel. Pena. Seria uma
excelente oportunidade de preservar a memória daquele que foi o maior industrial
da história do capitalismo brasileiro.


Colaborou Lílian Cunha


ABANDONO – Nos anos 80 e 90, o palacete que abrigou obras de arte de
Canaletto e Rubens permaneceu fechado.


 

Mais Notícias

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.