Leilão de patrimônio mantém na berlinda a lenta agonia da Cooperativa Agrícola de Cotia

2 de abril de 2009 | Sem comentários Comércio Cooperativas

AGRONEGÓCIOS
02/04/2009
 
Leilão de patrimônio mantém na berlinda a lenta agonia da CAC
 
 
Patrick Cruz, de Mogi das Cruzes (SP) e São Paulo

A Cooperativa Agrícola de Cotia não cabia em si de grande. Ela era a senhora, a rainha, a maior das cooperativas brasileiras, com um reinado quase septuagenário. Pois na última sexta-feira, dado um jeitinho, ela coube no salão do júri do Fórum de Mogi das Cruzes (SP). Estava lá, diante do Jesus de madeira pendurado na parede, entre dois pesados ventiladores verticais, caros às repartições públicas, e sentada em uma das 70 cadeiras de couro verde-escuro ocupadas por uma claque suarenta. Quinze anos depois de morrer, a Cooperativa Agrícola de Cotia continua a ser desmontada.


O encontro da última sexta-feira foi a primeira rodada de leilões de ativos da cooperativa realizada neste ano. Alguns leilões foram realizados desde 2003, sempre no ritmo de um por ano, mas nenhum com tantos itens – foi de 55 a soma de terrenos e imóveis, com valor atualizado de R$ 48,3 milhões. O leilão marcou também o apressamento da liquidação do patrimônio, já que, a partir de 2009, haverá leilões a cada dois meses. O próximo já está previsto para o fim de maio.


Com rachaduras provocadas por apostas estratégicas equivocadas, benevolência com associados que não quitavam seus débitos e a cantilena de planos econômicos que se sucedeu desde o início da Nova República, a CAC, como também ficou conhecida, ruiu de vez em 30 de setembro de 1994. A assembleia daquele dia decretou a extinção da sociedade e a liquidação de seu patrimônio para cobrir débitos que, em valores da época, chegavam a US$ 900 milhões.


Em 27 de março de 2009, ninguém quis saber de dar lance pelo lote 15 da quadra 19, na Rua Projetada, a 15 metros da esquina com a Rua Mato Grosso, em Andirá (PR). Ali, sob a forma de um terreno de 360 metros quadrados, com uma casa de madeira em parte coberta por tinta de um marrom surrado, repousa um quinhão da CAC. Era o item dois do leilão.”Deviam deixar as babas pra mais tarde e ir direto pro filé”, entreouviu-se no anúncio da pechincha, avaliada em R$ 33,2 mil. Era o resmungo de um homem de calças jeans largas e camisa de manga curta apertada pela panturra. O leilão começou com uma hora de atraso e com um dos dois ventiladores da sala desligado.


No fim dos anos 80, no suspiro que precede o passamento, a CAC era “a” cooperativa. Com sua opulência titânica, era não apenas a maior do gênero no país, mas também na América Latina e no mundo. De soja, milho e trigo, foi a principal produtora nacional até 1992, ano em que faturou US$ 1,1 bilhão, em valores da época. Em hortigranjeiros, era responsável por 30% do abastecimento da Grande São Paulo.


Com a Agroflora, a cooperativa era a maior produtora nacional de sementes de hortaliças. Mesmo no então diluído mercado nacional de fertilizantes, ostentava uma lustrosa medalha de prata, com 8% de participação – à frente da CAC, apenas o grupo Trevo; atrás dela, um batalhão de empresas que desapareceram do mercado: Manah, Solorrico, Fertiza, Fertibrás, Takenaka e Iap.


“O que foi mesmo essa agrícola?”, indaga o empresário Rodrigo Cavinato, um dos participantes do leilão de março. Para ele, tanto fazia. Cavinato é especialista em compra de imóveis na bacia das almas: leva os bens por uma pechincha, vende logo ali adiante por um preço melhor – ou, se comprador não houver, aluga sua mais recente aquisição. Boa parte dos 70 assentos do salão do júri do Fórum de Mogi das Cruzes estava ocupada por potenciais compradores. Não houve lance para todos os ativos oferecidos na rodada.


Nas cercanias do cinquentenário da cooperativa, os associados chegaram à conclusão óbvia: já não havia condições logísticas para reunir todo mundo nas assembleias gerais. “Era preciso alugar um cinema na rua Teodoro Sampaio para as assembleias. Vinha gente de todo canto”, conta o ex-cooperado Américo Utumi, que faz referência ao Cine Brasil, falecido como a CAC, localizado na rua do bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Entre 1952 a 1992, Utumi passou de contínuo a vice-presidente da CAC. Atualmente, é assessor da Organização das Cooperativas do Estado de São Paulo (Ocesp) e diretor da Aliança Cooperativa Internacional (ACI).


Se nem cinema dava mais conta do povo todo, era hora de descentralizar a atuação. Foram criadas, então, oito regionais da CAC, autônomas, com seus próprios presidentes e conselhos de administração. Às regionais, que passaram a eleger delegados para as assembleias gerais, em São Paulo, foi arrendada a estrutura local de terras e armazéns.


Foi com esse processo que nasceram “filhas” da Cooperativa Agrícola de Cotia, muitas delas ainda hoje em atividade. Em relatos ouvidos pelo Valor, cooperados das “filhas” dizem sentir saudades dos tempos de CAC, mas preferem não associar a atuação de hoje com a cooperativa que lhes deu origem. Américo Utumi resume o espírito: “até hoje não me conformo com a quebra”, diz.


O texto do edital dizia que o lance mínimo para arrematar um dos ativos da CAC na segunda rodada do leilão deveria ser, no mínimo, de 60% do valor de avaliação do imóvel – houve uma primeira rodada, realizada em 18 de março, na qual o bem só podia ser arrematado por 100% do valor de avaliação. No dia da segunda rodada, o que se informou no Fórum de Mogi das Cruzes era que o lance mínimo deveria ser de 75%. E nada de parcelamento: ou pagamento à vista ou nada feito.


Rodrigo Cavinato, o empresário especializado em leilões judiciais – “vou sempre. Às vezes é que falha um dia ou outro” – foi um dos que resolveram pechinchar. Deu seu lance unitário por 20 boxes localizados no Mercado São Sebastião, no Rio de Janeiro, por desembolso que correspondeu a 60% do valor de avaliação dos imóveis. E pediu parcelamento em dez vezes. O advogado liquidante judicial da CAC, Rolff Milani de Carvalho, ficou de apresentar a proposta ao juiz responsável pelo processo. “Existe um enorme interesse na venda desses boxes”, disse ele.


A rede McDonald’s chegou ao Brasil em 1979. Podia ser desafiador desbravar um mercado desconhecido como o brasileiro, mas um dos empecilhos era muito mais frugal que desembarcar no país com a quinta maior extensão territorial do planeta. “Não havia oferta de alface americana para se fazer os sanduíches e não dava para fazer com alface crespa ou lisa”, relembra Américo Utumi, o saudoso ex-cooperado, ex-contínuo e ex-vice-presidente da CAC. Fechou-se acordo e a CAC – o McDonald’s das cooperativas – teve exclusividade no fornecimento de alface para o McDonald’s – a CAC das redes de fast food.


“A cooperativa era muito grande, mas os imóveis estão todos aí”, disse Luciano Pirocchi, advogado de um dos participantes do leilão de março, sobre a lista de bens oferecidos na rodada. Depois, informado sobre a existência de pelo menos mais 400 matrículas de imóveis a serem leiloados em rodadas futuras, espantou-se. “Achei que essa era a lista completa. A CAC era grande mesmo”, afirmou. A soma dos bens arrematados em março superou os R$ 25 milhões, mas alguns lances – para os quais se pediu parcelamento ou desconto maior que o permitido – não foram efetivados imediatamente.


A CAC foi uma das pioneiras na exploração do cerrado brasileiro para a atividade agrícola. Foram os tempos do Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer), no governo do ex-presidente Ernesto Geisel, quando Alysson Paulinelli era o titular do Ministério da Agricultura. Japoneses e seus descendentes, em sua maioria, foram assentados pela CAC no cerrado mineiro para o plantio de café.


Não houve intervalo para o café no leilão do dia 27 de março. E pausa não foi requisitada. Vencedores registravam seu lance com o tabelião e retiravam-se em seguida, sem esperar o fim da sessão. Perdedores partiam resignados.


O nome é auto-explicativo. Os 83 japoneses e descendentes que em 1927 fundaram a Sociedade Cooperativa de Responsabilidade Limitada dos Produtores de Batata em Cotia juntaram forças para plantar e comercializar batatas em Cotia, a 27 quilômetros da capital paulista. A sede do grupo, anos depois, foi transferida para a região do Largo da Batata – em Pinheiros, na zona oeste paulistana, próxima do Cine Brasil. Ao vencedor, as batatas. A CAC, às batatas.

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